A prática da automutilação pode ser causada por sentimentos de medo, depressão, dores psicológicas e até mesmo espirituais.
(Foto: Getty)
"Oi, alguém me ajuda? Me corto. Tenho Onze anos de idade". O pedido de socorro é pequeno e tem poucas palavras, mas é o suficiente para mostrar o desespero de uma criança que pratica a
automutilação ou o chamado "cutting", que consiste no uso de lâminas para cortar o próprio corpo, em busca de alívio para algum tipo de dor (emocional ou até mesmo, espiritual).
O tema é pauta de uma matéria especial do Fantástico neste domingo (20), mas segundo a pastora, advogada e palestrante
Damares Alves, já é um problema antigo, que atormenta, não somente os que se afundam nesta prática, mas também as famílias destes jovens e crianças que se automutilam.
"As crianças estão com dor na alma e elas falam que se cortam para aliviar a dor da alma. As crianças estão se cortando no Brasil a partir de oito anos de idade", alertou a pastora.
Damares Alves coordena um grupo cristão que busca alertar igrejas e famílias sobre o perigo da automutilação. Considerando que esta é uma realidade cada vez mais presente, até mesmo entre jovens, crianças e adolescentes cristãos, a pastora e suas parceiras desse ministério têm buscado abrir os olhos de líderes, afirmando que o "cutting" é, na verdade, um pedido silencioso de socorro.
Em entrevista exclusiva ao Portal Guiame, pastora Damares Alves falou abertamente sobre o assunto, mostrando que a o vício da automutilação não discrimina classe social, raça ou religião; alertou sobre o poder das redes sociais na disseminação dessa prática e a importância da ação dos pais e igrejas no combate a este mal.
Confira a entrevista na íntegra, logo abaixo:
Portal Guiame: Jovens, adolescentes e até mesmo crianças estão praticando a automutilação no Brasil, para tentar fugir de suas dores (psicológicas ou espirituais). Em sua opinião, o que está abrindo caminho para que as coisas cheguem a tal ponto?
Damares Alves: É bom lembrar que a automutilação, ou o "cutting", não é algo novo. Isto sempre existiu entre jovens e adolescentes. Eu conheço adultos que se automutilaram quando jovens. Na literatura médica, na classificação das doenças, encontramos a 'Síndrome de Bonderline', também conhecido como transtorno de personalidade limítrofe. É uma doença psicológica grave, que provoca oscilacão de humor. O indivíduo tem medo de ser abandonado pelas pessoas próximas, pelos familiares e sofre com comportamentos impulsivos. O portador desta síndrome também se automutila.
O que vem chamando atenção de todos agora é o numero cada vez maior de crianças, adolescentes e jovens praticando a automutilação. O que também assusta, causa espanto, é o fato de encontrarmos criancas cada vez mais novas se ferindo, se cortando, se machucando. Eu mesma estou acompanhando uma menina que tem apenas sete anos de idade e pratica o "cutting".
O número, de fato, é assustador. Já existem até especialistas afirmando que estes jovens e crianças estão se automutilando por modismo. É fácil encontrar um adolescente afirmando que se cortou só porque todos estão se cortando. Quem navega neste universo também percebe que existe aquele se corta para ser aceito no grupo, para ganhar a admiração e prestigio na escola ou nos grupos, provando que "tem coragem". E possível perceber que existe até uma certa competição e exibicionismo. Alguns se filmam, se fotografam enquanto se ferem e publicam nas redes sociais para mostrar que se cortaram mais, que têm a maior cicatriz, que sua dor e maior que a do outo. Uma professora me disse que ela tem a impressão que alguns de seus alunos exibem as cicatrizes como um tipo de troféu.
Contudo, na minha experiência, percebo que a maioria esmagadora dos que se automutilam dessa forma agem em virtude da depressão, da angústia, por estarem machucados, sofrendo com uma profunda e terrível dor na alma; dor essa que é motivada por diversos fatores como abuso sexual, bulliyng, dúvidas sobre a própria identidade sexual, abandono, agressões fisicas e psicológicas, sentimento de culpa, medo, entre outros. A frase mais comum entre eles é: “a cada corte, um alívio”.
Damares Alves recebe com frequência, imagens de adolescentes que se cortam para tentar aliviar suas dores da alma. (Imagem: Facebook)
Portal Guiame: Aplicativos de celular e grupos das redes sociais estão ensinando e estimulando esta prática tão prejudicial. Qual o papel dos pais no combate a este tipo de ataque?
Damares Alves: Sou considerada por alguns como radical e excessivamente zelosa quando digo aos pais que adolescentes não podem ter senhas secretas [que somente eles saben] em seu celulares e computadores e nem senhas secretas para navegar na internet. Os pais precisam saber com quem os filhos falam nas redes sociais e sobre o que estão falando. Mas isto tem que ser construído com os filhos, dentro de um ambiente de diálogo, para que os filhos não sintam que isto é uma "invasão de privacidade". Tenho recomendado aos pais, que retardem o máximo possível a entrega de um celular, computador ou tablet para os filhos manusearem sozinhos. Tem sido cada vez mais comum os pais darem a uma criança de cinco anos de idade, por exemplo, o primeiro celular com acesso irrestrito à internet.
As redes sociais hoje têm disseminado uma cultura de morte. Existem grupos, páginas e até mesmo blogs disseminando a ideia da automutilação. Facilmente encontramos vídeos ensinando nossos filhos a se cortarem, se machucarem e até mesmo a se enforcarem.
Tive um encontro com pais cujos os filhos tinham se suicidado. Eles me disseram que não sabiam que os filhos estavam se cortando. Somente depois das mortes, quando foram verificar os computadores e celulares é que descobriram o que estava acontecendo.
Quero chamar atenção dos pais para os grupos de whatsapp. Existem grupos fechados de adolescentes e jovens suicidas. Tenho recebido alguns 'prints' [capturas de tela] de conversas que acontecem entre os membros destes grupos. O conteúdo me deixa estarrecida.
Portal Guiame: Em uma de suas palestras, você revelou que 40% das crianças que se cortam no Brasil são de famílias cristãs. Como as igrejas podem se mobilizar para combater este ataque sofrido por mentes tão jovens e vulneráveis?
Damares Alves: Tenho alertado aos líderes e aos pais que dentro das igrejas temos muitas crianças, adolescentes e jovens se cortando. Faço este alerta, pois muitos pais evangélicos e católicos praticantes acham que seus filhos estão imunes e que jamais se automutilarão. Os pais precisam saber que apenas levar os filhos para os templos, levá-los para um evento na igreja não quer dizer que eles tiveram um encontro de verdade com Jesus Cristo, que cura todas as dores da alma. Os pais levam os filhos, geralmente uma vez por semana à igreja e apostam que assim fizeram sua parte... que os filhos estão protegidos, mas ao longo da semana estes mesmos pais estão ausentes, distantes dos filhos ou alguns até mesmo são os agentes das agressões que provocam tanta dor nos próprios filhos.
Nos últimos meses, em todas as igrejas nas quais falei sobre automutilação, ao final do culto tive que orar por jovens, crianças e adolescentes que estavam se cortando ou que se relacionavam com pessoas que se automutilavam. Já aconteceu comigo também de estar pregando e jovens se levantarem de seus bancos e jogarem as navalhas / lâminas no púlpito, enquanto eu falava ou orava. Tive uma experiência recente com um pastor de uma grande igreja. Eu estava falando e ele me interrompeu, tomou o microfone de minhas mãos e pediu para a esposa subir ao púlpito. Juntos, chorando, ambos confessaram para a igreja que a filha de 14 anos de idade, se automutilou durante dois anos.
Já aconteceu em uma igreja que o ministério de louvor não conseguiu cantar ao final da minha palavra, pois todos choravam muito e me pediam para orar por eles. Tiveram a coragem de confessar que dois dos membros do grupo estavam se cortando. Não há uma igreja que quando eu fale sobre o assunto, professores, médicos ou agentes da área de seguranca presentes no auditório não se levantem em lágrimas, pedindo por socorro, pois não sabem mais o que fazer no diante da grande quantidade de crianças e adolescentes que eles atendem e que estão se cortando. O assunto está mais presente na Igreja que todos possam imaginar. Os pastores e líderes não poderão mais ignorar esta tragédia que abate toda a sociedade. Não podemos mais fingir que isto não está acontecendo, também dentro de nossas igrejas.
Imagens dos cortes geralmente são postadas nas mídias sociais com pedidos de socorro, para tentar se libertar do que os próprios praticantes da automutilação chamam de "vício". (Imagem: Facebook)
Portal Guiame: Existe uma relação forte entre a automutilação e o suicídio? Uma coisa poderia levar à outra?
Damares Alves: Que fique certo que nem todos que se automutilam querem se matar. Pelo contrário: alguns querem tanto viver que se cortam para aliviar suas dores e assim sobreviverem. Há necessidade de se identificar o que está levando a pessoa a se automutilar. Ttemos que atacar e nos preocupar com a causa disso tudo. No entanto, um adolescente ou um jovem que está se automutilando e que passa o tempo todo se relacionando com outras pessoas que também se automutilam pode ser sugestionado ou até mesmo incentivado a se suicidar. Sabemos inclusive que existem grupos que desafiam estes jovens e crianças a fazerem pactos de suicídio.
Temos ainda um outro aspecto a ser considerado. Algumas pessoas morrem durante a automutilação por acidente. É comum que pessoas estarem se cortando e passarem do ponto imaginado, quando alcançam uma veia, passando a sangrar demais, morrendo por hemorragia. Outro exemplo são aqueles que estão se sufocando com cordas e passam do ponto e morrem enforcados. Saibam que do mesmo jeito que existem pessoas que se cortam para aliviar a dor, tem pessoas que se sufocam com cordas apenas para ter a sensação do sufocamento e aliviar suas dores, mas não querem se enforcar realmente. Existem várias formas de se automutilar, como atear fogo em partes do corpo, arrancar cabelos, comer objetos, etc. Todas as formas podem levar à morte de forma acidental.
Grupos de mídias sociais têm distribuídos às crianças, até mesmo um "tutorial de suicídio". (Imagem: Facebook)
Portal Guiame: Então, qual seria a real gravidade deste quadro?
Damares Alves: É muito grave. Estamos diante de uma das maiores tragédias. Estamos diante do maior ataque aos nossos jovens, adolescentes e criancas. Desde que eu comecei a lidar com o tema, estou mergulhada em um mar de sangue. Confesso que não e fácil lidar com tanto sangue derramado. Urge a necessidade de nos levantarmos e com coragem bradar: Basta!
FONTE: GUIAME, POR JOÃO NETO